Francisco de Assis, modelo referencial do humano – XXI

Francisco de Assis nos ensina que viver é despojar-se de qualquer sofisticação e beber mais do puro aberto do natural. Ir mais aos detalhes da vida e ver seus muitos gestos de doação e acreditar numa novidade originária. Ele é o homem que voltou ao Paraíso.  Que ele nos dê novamente esta imensa saudade do Paraíso do qual nós mesmos nos expulsamos. Ele é a Poesia da Vida e a Poesia do Humano. E o humano que anda leve no movimento sem pressa do caminho, percebendo ritmo e o verso do próprio passo. Franciscanismo e Poesia não se separam porque estiveram sempre juntos na percepção da sua identidade, mergulhados no Natural. E por falar em Poesia, vamos encerrar este ponto com o grande Drumond, poeta de Itabira, de Minas, do Rio e do Mundo:

“Francisco operário madrugador na construção de igrejas,
(não de edifícios de renda, longe disso).
Tantas coisas pra lhe contar, daqui de baixo!
Mas você não cansou, em sete séculos e meio,
de ouvir a eterna queixa, o monocórdio estribilho
de nossa falta de humildade cortesia ternura nudez?

Veja por exemplo os bichos (só a eles me refiro
porque não falam por si). Arvoro-me em secretário
do mico-estrela, da tartaruga, da baleia,
de todos, todos. Dos mais espetaculares aos mínimos,
tão míseros.
De irmãos você os chamava. Repare: aterrorizados.
fogem de nós, com muita razão e longos medos.
E um e outro, isolados, gostamos.
Coisa nossa, brinquedo. É gosto sem gostar,
feito de posse-domínio.
Veja as infinitas coleções
de animais que padecem em todos os chãos e águas da Terra
e não podem dizer que padecem, e por isso padecem duas vezes,
sem o suporte da santidade.

Pior, Francisco: o padecimento deles
é de responsabilidade nossa, humana? Desumana.
Nós os torturamos e matamos
por hábito de torturar e de matar
e de tornar a fazê-lo, esporte,
com halalis, campeonatos, medalhas, manchetes,
pólvora cheirando festa,
ouro pingando sangue...

Repiso estas coisas meio encabulado.
Tão velhas!
Tão novas sempre, secamente.
Técnicas letais varejam o fundo do mar
E o velho tiro, a velha lâmina
estão sempre caçando o irmão bicho.

Lembrar que terrível penúria de amor
lavra nos corações convertidos em box
de supermercados de crueldades?
E penúria logo de amor,
essa matéria prima, essa veste inconsútil de sua vida, Francisco?

Culpo-me, santinho nosso,
mas antes faço-lhe um apelo:
Providencie urgente sua volta ao mundo
no mesmo lugar, em lugar qualquer
(não, é óbvio, onde se comercia a santa esperança dos homens),
para ver se dá jeito,
jeito simples, franciscano, jeito descalço
de consertar tudo isso. Os bichos,
por este secretario, lhe agradecem.

(Carlos Drumond de Andrade, in Jornal do Brasil, 01.10.1976 )

continua

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